
Brincadeira sem graça
Início das aulas nas universidades traz de volta discussão sobre trote violento
José Guilherme Abrão Firmino
Com o início do ano e a entrada de calouros nas universidades federais vem o já tradicional “trote”, a forma dos veteranos de recepcionar e confraternizar com os novos alunos através de brincadeiras. Porém, todo ano também surgem várias notícias de abuso, humilhação e violência feita com os calouros por parte dos veteranos. O caso mais polêmico desse ano foi o das calouras de Veterinária da UnB que tiveram que lamber uma linguiça com leite condensado, simulando sexo oral.
Mais uma vez, casos como esse levantam a questão de como evitar esses abusos, qual a origem deles, qual o motivo que leva os veteranos a abusarem de seus calouros e como combater esse problema, mantendo a tradição da recepção divertida dos novos alunos.
O trote é uma prática tão tradicional às universidades que existe desde a época Medieval e na época era ainda mais abusivo e violento do que hoje. Há registros de trotes na Alemanha e na França dos séculos XIV e XV. Em Heidelberg, na Alemanha, em 1491, os novos alunos tinham que andar nus e comer fezes de animais e no ano seguinte faziam o mesmo com os seus calouros. De acordo com o psicólogo Antônio Álvaro Soares Zuin, autor do livro O trote na universidade: passagens de um rito de iniciação, em matéria do site O Tempo, essa prática surgiu por causa dos alunos saírem das entranhas da Europa medieval para estudarem em grandes centros urbanos, como Paris.
Por causa disso, os alunos eram “bichos” que deviam ser domesticados. Até hoje, mais de 500 anos depois, os veteranos se referem aos calouros como “bichos”. Mas e nos dias de hoje? Para a nossa sociedade moderna, essas ações são degradantes e inaceitáveis, mas então, o que leva os alunos a cometerem atos da mesma natureza na atualidade? De acordo com Zuin, o que leva a essas práticas abusivas é a sensação de poder dos veteranos e também uma forma de descontar frustrações acadêmicas: “Penso que os veteranos querem descontar o sofrimento a que são submetidos com alguns professores. Como não podem se vingar diretamente, fazem isso com os calouros”.
O que os alunos pensam
O veterano de Administração da UnB Rodrigo Pastori Lara, disse que acha a divulgação dos trotes na mídia muito sensacionalista. Ele criticou uma notícia publicada no portal de notícias R7 em fevereiro desse ano que se referia ao trote no parque Vaca Brava como “selvageria” e que os alunos “invadiram” o parque, sendo que ele é tradicionalmente o local de comemoração do vestibular há 13 anos e que sempre é acompanhado pela polícia e pelos paramédicos dos bombeiros.
Para Rodrigo, os atos violentos são de alguns poucos veteranos isolados e que ele não se sentiu ofendido em ser pintado ou sujo com tinta, ovos e farinha, pois acha que isso faz parte do ritual de passagem. Ele acredita que quem pratica o trote violento são “alunos frustrados, buscando uma forma de auto-afirmação”.
Já o calouro de Engenharia Elétrica da UFG Lucas Vasconcelos disse não ter tido medo do trote. Ele acha que a violência deve ser combatida, mas que o trote como diversão e integração é uma tradição que deve ser mantida: “Trote violento é um absurdo e deve ser combatido. Já trote com fins apenas de integração e recepção a futuros colegas é uma boa! Não sofri humilhação e tenha certeza que não vou fazer meus calouros sofrerem”. Para ele, é muito fácil diferenciar abuso de brincadeira: “Brincadeira não tem humilhação, violência! Seja violência psicológica ou violência corporal!”.
Alternativas e medidas legais
Legalmente, todas as atitudes em um trote podem ser punidas por lei, caso o estudante se sinta ofendido por elas. Forçar a ingestão de bebida alcoólica é considerado constrangimento ilegal, pintar ou sujar o corpo é injúria e abusos físicos é lesão corporal. Mas além disso, a maior parte das reitorias já incluíram penalidades para quem cometer trote ou humilhação e abuso de qualquer tipo a alunos calouros dentro dos campi universitários.
Na UFG, a Resolução Nº2 pune alunos que cometam qualquer tipo de agressão a outros alunos. Caso o calouro se sinta ofendido ou intimidado, deve denunciar o fato na coordenação de seu curso. Algo semelhante ocorre na UnB e Belo Horizonte foi além quando a Câmara Municipal aprovou um projeto de lei que proíbe e pune trotes violentos nas faculdades da capital mineira. “O que precisamos é de conscientização, uma nova cultura que não aceite tragédias como brincadeiras", defende o advogado Fábio Romeu Canton Filho, coordenador da campanha contra trotes violentos da OAB de São Paulo, em entrevista ao site O Tempo, do dia 17 de fevereiro desse ano.
Uma alternativa muito defendida e utlizada pelos veteranos é o chamado “trote solidário”. “A chegada dos novos alunos deve ser comemorada de modo respeitoso e solidário" disse o filósofo Paulo Denisar em entrevista para o site da UnB, onde ele presidiu um debate sobre o trote violento, tema que ele estuda há 20 anos. “O estudante não precisa desfilar aberrações em praça pública para dizer que entrou na universidade. Ao contrário. Deve assumir uma postura de responsabilidade científica e intelectual, com sensibilidade para os temas sociais e para os desafios do conhecimento”, completa.
A forma com que é feito o trote solidário varia de um curso para o outro. Por exemplo, os calouros de Biblioteconomia desse ano tiveram que ajudar a combater focos do mosquito da dengue no Campus Samambaia, uma iniciativa do professor Wanderlei Gouveia. De forma geral, formas lúdicas de comemorar a chegada dos novos alunos é encarada como a melhor solução para dar fim ao trote violento e é promovida pelas reitorias e diretórios estudantis.
A ideia do trote solidário tem até mesmo o apoio dos alunos, como Rodrigo, que acha que a melhor solução para combater o trote violento é “sugerir novas formas de trote mais divertidas, criativas e integradoras, como o trote solidário promovido pelo DCE da UnB”. Enfim, o que podemos esperar é que a prática da conscientização dos estudantes aliada ao combate e repúdio aos trotes abusivos possam trazer um fim a essa prática literalmente medieval.
Fonte: Facomb